Direito à Vida, quando começa a Proteção à Vida e Aborto

Faz algumas semanas que gravamos o episódio 10 do podcast decodificando (que foi ao ar na semana passada), e logo em seguida começaram a surgir os comentários sobre a ADI da “Lei da Biossegurança” (11.105/05). Também foi logo em seguida que começamos a tratar do crime de abortamento na matéria Direito Penal II. Com isso surgiu a vontade de comentar algumas questões específicas, especialmente nos pontos coincidentes com os acontecimentos citados.

Para começar a questão da ADI 3.510, que apesar de não tratar do aborto trata de um ponto fundamental para resolver a questão do aborto: a determinação da vida embrionária como protegida por nossa Constituição Federal, nos termos do “caput” do art 5º. Apesar de eu já ter dito isso no podcast, vou começar com a minha visão:

> O artigo 5º ao tratar da inviolabilidade do direito à vida (entre outros) determina que esses direitos são garantidos aos brasileiros e estrangeiros residentes no país, conforme abaixo:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

> A Nacionalidade é um direito adquirido junto com a personalidade jurídica, ambos no momento do nascimento com vida, conforme o art 2º do Código Civil, e artigo 12 da Constituição Federal.

Constituição Federal

Art. 12. São brasileiros:

I – natos:

a) os nascidos na República Federativa do Brasil, ainda que de pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de seu país;

b) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que qualquer deles esteja a serviço da República Federativa do Brasil; (…)

Código Civil

Art. 2º A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.

> Com isso, é possível entender que esses direitos são garantidos a PESSOAS que JÁ NASCERAM.

> Algumas pessoas entendem que a segunda parte do art. 2º do Código Civil significaria que há uma proteção ao direito à vida do nascituro. Ainda assim há doutrinadores que entendem que os direitos ai protegidos são os direitos patrimoniais (como o de receber herança, por exemplo). De qualquer modo, mesmo que o código civil especificasse essa proteção como sendo também uma proteção à vida (que é um típico direito da PERSONALIDADE que o nascituro não tem) essa proteção seria meramente legal, e não constitucional.

Eu tenho defendido esse ponto de vista desde o primeiro ano de faculdade, quando fizemos um trabalho justamente sobre a proteção do direito à vida, mas pouquissimas pessoas concordavam comigo nessa interpretação. Daí que eu tenha me sentido realmente feliz em ler o voto do Relator, Ministro Carlos Britto sobre a questão da proteção constitucional do embrião.

Destaco alguns trechos do voto do ministro (ficou meio longo, mas é o mínimo para deixar bem clara a idéia):

É que a nossa Magna Carta não diz quando começa a vida humana.(…) E quando se reporta a “direitos da pessoa humana” (…) e até dos “direitos e garantias individuais” como cláusula pétrea (inciso IV do § 4º do art. 60), está falando de direitos e garantias do indivíduo-pessoa. Gente. Alguém. De nacionalidade brasileira ou então estrangeira, mas sempre um ser humano já nascido e que se faz destinatário dos direitos fundamentais “à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” (…).Tanto é assim que ela mesma, Constituição, faz expresso uso do adjetivo “residentes” no País (não em útero materno e menos ainda em tubo de ensaio ou em “placa de Petri”), além de complementar a referência do seu art. 5º “aos brasileiros” para dizer que eles se alocam em duas categorias: a dos brasileiros natos (na explícita acepção de “nascidos”, conforme as alíneas a, b e c do inciso I do art. 12) e brasileiros naturalizados (a pressupor formal manifestação de vontade, a teor das alíneas a b do inciso II do mesmo art. 12). (…)
Numa primeira síntese, então, é de se concluir que a Constituição Federal não faz de todo e qualquer estádio da vida humana um autonomizado bem jurídico, mas da vida que já é própria de uma concreta pessoa, porque nativiva e, nessa condição, dotada de compostura física ou natural. É como dizer: a inviolabilidade de que trata o artigo 5º é exclusivamente reportante a um já personalizado indivíduo (o inviolável é, para o Direito, o que o sagrado é para a religião). E como se trata de uma Constituição que sobre o início da vida humana é de um silêncio de morte (permito-me o trocadilho), a questão não reside exatamente em se determinar o início da vida do homo sapiens, mas em saber que aspectos ou momentos dessa vida estão validamente protegidos pelo Direito infraconstitucional e em que medida.

É exatamente nisso que eu concordo plenamente com o ministro: Sim a Constituição protege a vida, mas que vida ela protege? a vida humana ou a vida da PESSOA humana?

Eu acredito que seja a vida da PESSOA humana, porque afinal de contas, se foi decidido proteger apenas a vida dessa espécie (e não dos demais animais) isso é em virtude de alguma característica que lhe torna diferente das demas espécies animais, e que característica seria essa senão a PERSONALIDADE, que possibilita aos seres humanos assumir a posição de sujeitos (e nunca objetos) de direito, não é a vida que garante essa posição (já que os animais são considerados objetos semoventes) mas justamente a personalidade.

Justamente por causa dessa questão vida humana x vida da PESSOA humana é que eu resolvi tratar do segundo assunto, que tem a ver com o aborto e com a questão dos animais.

Sempre que se argumenta sobre o aborto acaba entrando em pauta a crueldade do procedimento, daí aparecem as fotos dos corpos dos fetos abortados, e filmes, como o que nós assistimos na aula de Direito Penal, mostrando os procedimentos (o Filme “Silent Scream” que mostra inclusive um video em ultrassom do momento do aborto).

Eu concordo com qualquer pessoa que me mostre essas imagens que o aborto não é uma coisa bonita, que as imagens são chocantes e que a coisa toda parece muito cruel vista dessa perspectiva. Ainda assim, o que me choca nessas imagens não é o fato de a criatura retratada ser um ser humano, um homo-sapiens, mas o fato de ser um ser vivo, um ser capaz de sentir dor, e sofrer. O que me parece cruel não é matar um ser humano, é causar sofrimento a uma vida.

Vendo o filme Silent Scream eu me lembrei da época em que eu andava com um pessoal Vegan, e das campanhas que eles faziam contra a exploração dos animais, e das fotos que eles me mostravam, dos corpos dos animais, do sofrimento a que eles eram submetidos, e como isso me parecia cruel. Ainda assim eu nunca consegui parar de comer carne, seja porque eu não gosto muito de vegetais então não ia sobrar mta coisa para eu comer, seja porque no fim das contas eu tomei uma decisão absolutamente egoista de satisfazer a minha fome às custas desses animais, e eu não gosto de pensar muito no processo pelo qual a carne passa antes de chegar a minha casa no formato de bife, porque se eu fizesse isso, se eu ficasse pensando nisso, eu me sentiria mal o tempo todo por causa dessa decisão.

Onde eu quero chegar com isso? Eu quero defender o aborto? Eu faria um aborto porque eu como carne? Não, nada disso. Eu sou sim a favor da escolha (que a mulher possa decidir ter um filho ou nao), mas eu provavelmente não teria coragem de fazer um aborto, nem de aconselhar alguém a isso, eu só quero dizer que as fotos chocam sim, mas essa não é uma crueldade pior do que o que é feito com tantos animais e apoiado pelas pessoas.

Alias, a crueldade não esta tanto no que nós vemos ou deixamos de ver, mas no que a vítima (seja humano ou outro animal) pode sentir, se antes do surgimento do sistema nervoso o feto não puder sentir dor, então nesse caso o aborto será menos cruel do que as situações a que são submetidos os animais vivos e capazes de sentir.

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10 Responses

  1. Dan says:

    É como eu li em algum lugar: entre destinar um embrião humano abandonado pelos seus “pais” à pesquisa científica e, com isso, à eventual cura de diversos males ou sua mera destruição, em qual se estará respeitando mais o direito à vida e a dignidade da pessoa humana?

  2. Carlos Fran says:

    Quer dizer que pela Constituição Federal, não há direito para quem vai nascer?!
    Entendo cada dia menos essas leis brasileiras…
    Até mais, Dani!

  3. Danielle Toste says:

    Oie Fran,

    Não há nenhuma previsão expressa na constituição, apenas no código civil no art. 2º e conforme eu disse ainda se discute se isso se aplica apenas aos direitos patrimoniais.

    Existem ainda doutrinadores que entendem que a Constituição, quando garante a inviolabilidade do direito à vida o faz em relação a toda vida humana, incluindo a embrionária. Eu partircularmente discordo dessa visão (assim como alguns outros doutrinadores e o Ministro Carlos Britto, citado acima).

    Uma doutrinadora conhecida que defende que a vida é protegida desde a concepção é Maria Helena Diniz, que tem inclusive um livro públicado sobre bioetica, para ela o direito à vida (inclusive do nascituro) é a base do nosso ordenamento devendo ser preservado sempre e acima de qualquer outro.

    Eu entendo diferente, acho que todos os bens protegidos no caput do artigo 5º tem igual importância, e todos eles devem ser observados à partir do princípio da dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos do nosso Estado e, de fato, como a vida pode ser digna se não vier acompanhada dos demais direitos fundamentais.

  4. Didi says:

    Temos afinidades em muitos pontos, Dani. Principalmente no que diz respeito à crueldade. E outra, também quero parar de comer carne, mesmo que os próprios animais se comam, o fato de pensar no processo me dá náuseas.

  5. Thayara says:

    Olá, fazendo uma pesquisa me deparei com seu texto e achei muito boa sua clocação, mas queria saber se você não acha que sendo a favor do aborto não estariam justificandas uma série de abortos desnecessários? Claro que há casos que são de extrema importância, como a saúde da mãe e em casos de estupros (já legalizados pela lei), mas a prática deliberada do abortamento não levaria a uma banalização da vida? Gostaria de saber sua posição.

  6. Danielle Toste says:

    Olá Thayara,

    Em primeiro lugar, em relação à sua pergunta é preciso determinar o que pode ser considerado “desnecessário” em termos de aborto. É necessário realizar um aborto do feto anencéfalo? É necessário realizar um aborto em vitimas de estupro? É necessário realizar um aborto em caso de risco de vida da mãe?

    Se eu tivesse que te responder essa primeira pergunta eu te diria com bastante convicção, o único aborto que poderia ser considerado necessário é o realizado em caso de risco de vida para a mãe, porque nesse caso o aborto realmente é necessário para salvar outra vida. Nos demais casos ele pode ser conveniente, pode ser justificado, pode ser compreensível, mas certamente não é necessário.

    Ainda assim, entendo que quando você menciona o aborto desnecessário na sua questão você se refere ao aborto injustificado, ou àquela cuja justificativa é considerada banal em relação à vida, aquele realizado por motivos financeiros, sociais, estéticos, etc.

    Então eu te respondo, eu sou a favor da escolha, em qualquer situação, incluindo o aborto necessário, o compreensível, o justificado e o injustificado. Eu sou, em qualquer caso, a favor da ESCOLHA.

    O motivo é muito simples: Eu acredito que ter um filho é a coisa mais séria que pode acontecer a um ser humano e educar um filho é um processo que leva uma vida inteira e que exige cuidado, carinho, dedicação e acima de tudo VONTADE. No fim das contas você pode obrigar uma pessoa a ter um filho, você pode impedi-la de abortar, mas você não pode, de maneira alguma, obriga-la a educar esse filho apropriadamente.

    Sobre a banalização da vida, cabe outra ponderação: de qual vida? da vida genericamente falando? da vida humana? da vida da PESSOA humana?

    Pode parecer que não, mas essas três formas de vida são bastante diferentes entre si, no primeiro caso estão incluídos todos os seres vivos do planeta, e são muitos; no segundo caso obviamente todos os níveis de vida que os homo-sapiens podem ter, incluindo aquela que é destruída com o uso da pílula do dia seguinte; o terceiro caso já é mais complexo, e em virtude da diferenciação entre o SER humano e a PESSOA humana que reside a grande diferença entre o homem e os demais animais.

    Na minha opinião a vida da PESSOA humana, e essa sim, digna de uma preocupação superior à dedicada à dos demais animais, só começa com o nascimento, porque é a partir de então que o bebê, criança, pessoa, começa a observar o universo ao seu redor e interpretá-lo, absorvê-lo, pensá-lo, aprender com ele.

    Tudo isso para dizer: Eu acho que isso causaria a banalização da vida humana? não, ou ao menos não mais do que é banalizada toda outra forma de vida em nosso planeta, e até esse momento eu não acho que ela mereça mais consideração do que qualquer outra. Não acho um aborto menos cruel do que os maus-tratos aos animais. Mas acredito que em qualquer caso devamos evitar procedimentos que causem dor a qualquer ser vivo no planeta.

    Completo ainda, se o aborto não tem o papel de atingir a importância ou de banalizar a PESSOA HUMANA todo o resto que acontece com uma criança após o seu nascimento tem. Para mim, as crianças trazidas ao mundo e largadas sem educação, sem preparo e sem amor, essas crianças abandonadas, elas sim, sofrem a banalização da VIDA DA PESSOA HUMANA, porque mais do que viver, mais do que vir ao mundo e sobreviver, a PESSOA HUMANA precisa de um elemento fundamental para ser valorizada, para ser tratada com o respeito e com importância que faz com que ela mereça um lugar de destaque entre as demais criaturas vivas: a DIGNIDADE.

    Para mim, a maior banalização da VIDA da PESSOA HUMANA é negar a essa pessoa uma VIDA HUMANA DIGNA.

  7. adriano queiroz says:

    Existe lei de proteção a mico leão dourado, a todos os tipos de animais em extinção, leis que protegem até mato verde, grama e seja la seus derivados. Em se tratando de vida humana, há uma desvalorização,querendo retirar o pouco direito à vida que ainda existe do nascituro. É vergonhosa uma sociedade tão anti-humana.

  8. Moema says:

    O meu projeto de monografia é sobre o aborto anencefálico e a inviolabilidade do direito à vida. Pesquisando sobre o assunto, encontrei seu texto e em muitos pontos concordamos já que, sou uma grande defensora da vida como um todo e amo os animais. Quando digo q amo,é amor meeeeesmo!!! Não suporto ver a tortura as quais são submetidos.
    Porém, discordo de vc quando diz que o aborto deve ser uma escolha da mãe. Em primeiro lugar, a primeira escolha deve ser não engravidar. A resposta a esse argumento geralmente é o mesmo: Ahhhh! Foi um descuido; falta de informação, blá, blá, blá… Que é isso gente? Falta de informação? Descuido? Hoje em dia? E eu não estou falando dos abortos legalizados não. Estou falando de milhares de mulheres que praticam o aborto todos os dias por pura irresponsabilidade e falta de coragem de assumirem suas responsabilidades. Porque quando querem, quando têm princípios, elas criam seu filho sobre toda e qualquer adiversidade. Não quero também generalizar, existem as exceções. Mas, o que realmente vejo, e tenho exemplos reais de pessoas conhecidas, é que o aborto em muitos casos é uma forma de livrar-se de um problema, um estorvo, uma pedra no sapato, que na verdade estará dando fim a uma vida. À vida humana, tão preciosa como todas as outras.
    Se essa vida será miserável ou não? Quem saberá? Como saber, se o direito de viver lhe está sendo tirado? Qual o conceito de miserável? Exitem pessoas extremamente ricas, as quais considero miseráveis. É verdade… Todos temos o direito à educação, a saúde, ao trabalho, a dignidade, mas como usufruir de tais direitos se o maior de todos está sendo tolhido? A vida deve ser sempre a primeira opção.
    Ah! Quanto ao aborto de anencéfalo, nem preciso dizer que sou contra. O conceito de vida não pode ser diminuído à falta de um órgão ou má-formação. Isso nos remete à Hitler e suas idéias de exterminar a vida que não fosse plenamente perfeita. Quem somos nós? O argumento de que o qnencéfalo não viveria mais do que 24 ou 48 horas, não me convence. Poderia ser um minuto e mesmo assim valeria a pena ver o rosto do seu filho. Eis minha opinião.
    Abraços a todos.

  9. lucia ribeiro says:

    Não posso concordar com aqueles que entendem que a inviolabilidade do direito à vida se restringe somente às pessoas nascidas. Não foi esse o intuito do legislador. Não se pode ver o tema apenas sob o ponto de vista gramatical. Se essa inviolabilidade fosse restrita apenas às pessoas nascidas, não seria crime a prática do aborto, já que não há ali uma pessoa ainda nascida. Haveria, na pior das hipóteses, o risco de nunca haver pessoa nascida, já que o feto seria extinto ainda no útero materno. E o Código Civil protege os direitos do nascituro, daquele que ainda vai nascer, vai se tornar uma pessoa. E não são direitos apenas patrimoniais, não. Para que assegurar direitos patrimoniais a um feto humano, se ele não tem direito à vida?

  1. 19/03/2008

    […] todas as coisas possíveis para falar a respeito do aborto (com o episódio 10 do Decodificando e o post de ontem) mas quando o Jonny me mostrou o video publicado no LadyBug Brasil, eu parei para pensar sobre um […]

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